quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A nova estagflação?

Nota: texto escrito por mim no começo do ano.

Para começar a desenvolver o meu raciocínio de que a economia americana estaria rumando para uma nova estagflação, acho necessário citar alguns dados da economia americana e explicar alguns conceitos para os leigos.

Serão dois os conceitos muito usados por aqui, inflação e recessão. Inflação é o aumento generalizado de preços na economia. Isso significa que a média de preços dos produtos e serviços mais importantes (que entram no cálculo) aumentou. Ou seja, com uma mesma quantidade de moedas se compra menos coisas do que se comprava antes da inflação. O que não significa que todos os produtos tenham aumentado de preço, apenas aumentaram na média. Há inflação quando há um aumento na quantidade de moedas em circulação sem contrapartida do aumento da quantidade de produtos e serviços. E recessão é quando a produção econômica de um país cai.

Vamos aos dados agora. Para começar, os EUA importam muito mais do que exportam. O que isso significa na prática?

Significa encher o território americano de produtos e serviços em troca de dólares como contrapartida. Ou seja, a maior potência mundial mantém o seu padrão de vida trocando bens por pedaços de papel. E isso é bom para a economia, já que pode contar com mais produtos e serviços. Até aí não haveria nenhum problema, se não fosse o Federal Reserve System, o Fed, que, querendo manter essa política a níveis maiores, e abusando do dólar como moeda padrão, começou a emitir dólares demasiadamente, para poder continuar comprando cada vez mais de fora. Hoje, a economia americana importa cerca de US$1,9 trilhão por ano, enquanto exporta cerca de US$1,2 trilhão no mesmo período. Isso dá um déficit na balança comercial de cerca de US$700 bilhões anuais.

Esse enorme déficit foi financiado por um número maior de dólares na economia. Explicando, como o país detém a moeda padrão, vários países do mundo acumularam reservas na moeda americana – uma espécie de seguro contra choques internacionais. Estas reservas hoje somam cerca de US$11 trilhões espalhadas entre BC’s de todo o mundo. Ou seja, é desejável para os países acumularem uma certa quantidade de dólares. Quanto mais o governo emite essa moeda, mais os americanos podem comprar produtos de fora, já que as trocas no mercado internacional são feitas em dólares.

No final das contas, se o Fed não abusasse desse poder que tem o dólar e continuasse uma política monetária séria, esse déficit de US$700 bilhões seria menor.

O que acontece agora é que com mais dólares espalhados pelo mundo, o valor da moeda caiu – ora, o dólar também reage à Lei da Oferta e da Procura. O dólar baixo significa que para os americanos passa a ser mais interessante exportar mais e importar menos, já que os produtos de fora ficam mais caros (passa a ser necessário mais dólares para comprar os mesmos produtos de antes, já que o dólar perdeu valor).

Isso significa, na prática, que os EUA passarão a trocar seus produtos por dólares, que voltarão para casa. Menos produtos na economia e mais dinheiro em circulação gera aumento geral de preços nos produtos internos, isto é, está por vir inflação das grandes em solo americano, se tudo continuar como está.

Então resta para o Fed controlar a inflação para evitar problemas maiores. Para controlar a inflação, o banco central americano terá que parar de emitir dólares na economia – ou começar a emitir em ritmo decrescente – e aumentar a taxa de juros (estes controlam a inflação uma vez que fica mais caro circular moedas na economia – menos dinheiro circulando na economia, menos inflação). Mas ele vai se deparar com vários problemas.

1) O crescimento americano já não está alto; um aumento nas taxas de juros força uma recessão econômica já que juros altos desestimulam os investimentos (pegar dinheiro emprestado fica menos interessante).

2) A emissão de dólares está tendo a função de também financiar o déficit fiscal americano, já que, atualmente, os EUA se deparam com um grande déficit na conta corrente. Isso significa que os americanos estão comprando menos títulos do que vendendo. A desvalorização do dólar faz aumentar as exportações, o que eleva a quantidade de dólares no país e ajuda o país a financiar sua própria dívida. Ou seja, se o país parar de emitir moedas não vai conseguir financiar suas dívidas. No final das contas o país precisa continuar inflacionando a própria economia para pagar suas dívidas. Com mais inflação ainda, torna-se necessário aumentar mais ainda a taxa de juros no futuro, que vai frear mais ainda o crescimento.

Ou seja, os EUA precisam escolher entre frear a economia e não pagar as próprias dívidas, rolando-as mais para frente ou inflacionar mais ainda a economia para quitar as dívidas e ter uma recessão mais forte no futuro.

A estratégia de continuar inflacionando a economia para pagar as próprias dívidas é ousada, e o maior problema é saber até quando eles podem suportar inflação alta sem maiores problemas e se a dívida estará paga até lá. Ou então saber se aumentando os juros agora e controlando a inflação para manter a estabilidade da moeda, e conseqüentemente rolando a dívida para frente e gerando recessão agora, será melhor.

Para exemplificar o poder que o Fed tem para fazer uma economia entrar em recessão, e invariavelmente sempre fará, vamos analisar uma medida tomada por este órgão recentemente.

Um grande número de moedas na economia, fruto da política do Federal Reserve, somado com as baixas taxas de juros, praticadas pelo mesmo órgão estatal, geraram um oba-oba no crédito. Mais dinheiro na economia e juros mais baixos incentivam o investimento. Muitas pessoas que não tinham como pagar empréstimos acabaram pegando emprestado o dinheiro, impulsionadas por essas políticas do banco central americano. A bomba acabou estourando no mercado imobiliário. O que aconteceu é que isso gerou créditos podres – alguém que emprestou não vai receber. Mas como não tem como saber quem não vai pagar, isso acabou criando um receio no mercado, ninguém mais emprestava para mais ninguém.

O que o Fed fez para solucionar esse problema? Injetou mais dinheiro (liquidez) no mercado. Dessa forma, com mais dinheiro disponível no mercado, o risco de receber títulos podres caiu e as pessoas voltaram a emprestar umas para as outras. Ou seja, para resolver um problema de excesso de liquidez, o Fed injetou mais liquidez! É impossível não fazer a comparação com um bêbado, que bebe mais para adiar a ressaca. Mas uma hora ele não vai mais agüentar beber e a ressaca vai vir, e pior.

Na prática, o que o Fed fez foi adiar algo que cobrará seu preço depois. E assim pessoas enchem o peito para dizer que o Fed salvou a economia, quando o que ele fez foi adiar o problema.

Entendido o problema pela qual passa a maior economia do mundo, podemos apontar algumas soluções para o problema.

Os EUA terão que enxugar o excesso de moedas de circulação, mas não podem frear o crescimento e nem parar de financiar a própria dívida.

Uma das soluções é diminuir os gastos públicos e recolher o próprio dinheiro. Como assim? O país recolhe uma certa quantidade de dinheiro por ano (impostos), essa quantidade de dinheiro é repassada para a população em forma de serviços. O que proponho é que o governo diminua a quantidade de serviços, mas não diminua os impostos (por ora) para economizar gastos. Dessa forma, vai sobrar uma certa quantidade de dinheiro. E é exatamente essa grana que ele deve usar para pagar a própria dívida, para não continuar dependendo do aumento das exportações, que gerarão inflação. (Vale ressaltar que o dinheiro usado para pagar a dívida retornará à economia, pressionando novamente a inflação; mas dentre os males, creio eu ser este o menor.)

Outra proposta seria abolir toda e qualquer restrição à livre circulação de mercadorias. Ora, se o problema é que as importações irão diminuir agora por causa do dólar desvalorizado, seria interessante estimular a mesma. E a melhor maneira seria tirando as restrições ao livre mercado.

Dessa forma, as exportações continuarão estimuladas pelo dólar desvalorizado e as importações também, amenizando os problemas. O governo continuaria recebendo as dólares das exportações para pagar as dívidas ao mesmo tempo que haverá menos inflação.

E também seria de extrema importância que o governo liberasse a circulação de toda e qualquer moeda na economia1. Por quê? O que os governos fazem hoje é liberar somente as transações em suas moedas (real, no caso do Brasil). Dessa forma, eu não posso pagar em dólar para o dono de uma padaria, por exemplo, pelos produtos que ele me vendeu aqui. Só posso pagar em real. O governo, assim, detém o monopólio da moeda.

Liberando a circulação de moedas, o governo perde o seu poder de inflacionar a economia (emitir moedas em excesso) já que as pessoas tenderiam a parar de usar uma moeda inflacionada e de baixo valor. Assim, quando o governo abusasse do poder que tem a moeda e a emitisse em excesso, seja para pagar gastos, seja para importar mais – como no caso dos EUA--, as pessoas simplesmente parariam de usar essa moeda para usar outras. Ora, ninguém vai querer poupar ou receber em uma moeda que perde seu valor com o tempo.

Para exemplificar isso, tivemos o caso da Gisele Bündchen que há pouco tempo atrás disse que só faria trabalhos se fosse receber em euros2, devido a recente desvalorização do dólar. Ou o Irã que acabou de anunciar que não venderá mais petróleo por dólares. E espera-se que o restante dos países da OPEP faça o mesmo.

Então, liberando-se a livre circulação de moedas, toda vez que uma perdesse valor, ela seria substituída por outras, pela vontade dos consumidores. Essa medida acaba forçando a estabilidade monetária por parte do governo. Em outras palavras, essa medida teria evitado a crise que está por vir este ano.

Como o Fed não tomará nenhuma dessas medidas, por impossibilidade política ou qualquer outra coisa, a economia americana está rumando para ter inflação e desaceleração econômica, e conseqüente desemprego; isto é, estagflação.

Então vem a inevitável pergunta: para que precisamos de um banco central?


1 No caso dos EUA, a informação não é totalmente verdadeira, já que na teoria (exemplo de como na prática é diferente) o dólar só tem o curso forçado, mas a concorrência é liberada.

2 A informação foi desmentida dias mais tarde.

Um comentário:

Anônimo disse...

8 DE OUTUBRO DE 2008 - 12h01
José Luis Fiori: O mito do colapso americano

"Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar." - N. Maquiavel, em O Príncipe, 1513.


Por José Luis Fiori*


Na segunda feira, 6 de outubro de 2008, a crise financeira americana desembarcou na Europa e repercutiu em todo mundo de forma violenta. As principais Bolsas de Valores do mundo tiveram quedas expressivas, e governos e bancos centrais tiveram que intervir para manter a liquidez e o crédito de seus sistemas bancários. Neste momento, não cabem mais dúvidas: a crise financeira que começou pelo mercado imobiliário de alto risco dos EUA já se transformou numa crise profunda e global, destruiu uma quantidade fabulosa de riqueza e deverá atingir de forma mais ou menos extensa, desigual e prolongada, a economia real dos EUA e de todos os países do mundo. Muitos bancos e empresas seguirão quebrando, nascerão rapidamente novas regras e instituições, e haverá nos próximos meses uma gigantesca centralização do capital financeiro, sobretudo nos EUA e na Europa. Os bancos e organismos multinacionais seguem paralisados e impotentes e se aprofunda, por todo lado, a tendência à estatização de empresas, à regulação dos mercados e ao aumento do protecionismo e do nacionalismo econômico. De todos os pontos de vista, acabou a "era Tatcher/Reagan" e foi para o balaio da história o "modelo neoliberal" anglo-americano, junto com as idéias econômicas hegemônicas nos últimos 30 anos. Como contrapartida, mesmo sem fazer proselitismo explícito, deverá ganhar pontos, nos próximos meses e anos, em todas as latitudes, o "modelo chinês" nacional-estatista, centralizante e planejador.


No meio do tiroteio, é difícil de pensar. Talvez por isto, multiplicam-se, na imprensa e na academia, os adjetivos, as exclamações e as profecias apocalípticas, anunciando o fim da supremacia mundial do dólar e do poder global dos EUA, ou do próprio capitalismo americano. Na mesma hora em que os governos e investidores de todo mundo estão se refugiando no próprio dólar e nos títulos do Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade e apesar de que o epicentro da crise esteja nos EUA. E, o que é mais interessante, são os governos dos Estados que estariam ameaçando a supremacia americana os primeiros a se refugiarem na moeda e nos títulos americanos. Para explicar este comportamento aparentemente paradoxal, é preciso deixar de lado as teorias econômicas convencionais sobre o "padrão-ouro" e o "padrão-dólar", e também as teorias políticas convencionais sobre as crises e "sucessões hegemônicas" dentro do sistema mundial.


Comecemos pelo paradoxo da "fuga para o dólar", em resposta à crise do próprio dólar. Aqui é preciso entender algumas características específicas e fundamentais do sistema "dólar-flexível". Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no "mercado financeiro do mundo", e o seu Banco Central (Fed), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio Fed e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo como lastro do sistema "dólar-flexível". Por isto, a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar. Uma situação única que gera enorme assimetria entre o ajuste externo dos EUA e dos demais países. Por isto também, a remuneração em dólares dos passivos externos financeiros americanos que são todos denominados em dólar seguem de perto a trajetória das taxas de juros determinadas pela própria política monetária americana, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria "dívida externa".

Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta de forma exclusiva no poder político e econômico americano. Agora mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos que serão comprados pelos governos e investidores de todo mundo, como justifica o influente economista chinês, Yuan Gangming, ao garantir que "é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes". (FSP, 24/11).


Mas, além disto, do ponto de vista da hierarquia mundial, se esta crise for administrada de forma estratégica pelo governo americano, ela poderá reforçar, ao invés de enfraquecer, a posição futura dos EUA dentro do sistema mundial. Para entender este segundo paradoxo, entretanto, é necessário ir um pouco além da economia e das finanças, e analisar com cuidado a origem e os desdobramentos das crises e da competição entre os Estados nacionais. Em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas, até hoje, pela própria potência hegemônica. Em segundo lugar, estas crises são provocadas quase sempre pela expansão vitoriosa (e não pelo declínio) das potências capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão. Em terceiro lugar, o sucesso econômico e a expansão do poder da potência-líder é um elemento fundamental para o fortalecimento de todos os demais Estados e economias que se proponham concorrer ou "substituir" a potência hegemônica. Por isto, finalmente, as crises provocadas pela "exuberância expansiva" da potência-líder afetam em geral de forma mais perversa e destrutiva aos "concorrentes" do que ao próprio líder, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais.


Resumindo: "apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada maior entre a China e os Estados Unidos".


* José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.


Artigo publicado no Valor Econômico (08/10)
Espero que os senhores se entendam

léo